2006/07/13

O Quarto...

Só me lembro que naquele preciso dia adoeci.
O relógio deixou de bater e o meu coração cedeu. Acordei num local desconhecido. À minha volta estavam máquinas, tubos, engrenagens, ventiladores... e um homem.
Olhava para mim falando...e...eu olhava para ele sem o ouvir. Tudo me parecia escuso, sujo e desarrumado. Só então percebi que me encontrava muito longe do quarto onde passei os anos mais felizes da minha vida.
O homem continuava falando e espargindo sobre mim gotas de um suor que lhe vinha das mãos... algo de que não gostei.
Quando os sons se foram formando entendi que naquele aljube… mais alguns vultos de olhar hipocritamente triste e astuto me olhavam. Nos seus rostos sentia-se o prazer amargo de quem espera uma partida com ansiedade. Assim se encontravam os meus... Aos poucos fui reconhecendo rostos. Irmãos, cunhadas e um sobrinho que fora amparado por Margarida.
O rapaz, se o posso apelidar desta forma, pois ainda não apresentava o bigode que marcara os homens da minha juventude, estava entretido com um dos ventiladores que parecia tossir, a cada arfar automático. O meu irmão mais velho, de cigarro na mão, nem fingia ouvir o que o homem dizia. O mais novo, de nariz no ar e pensamentos concubinos, esperava apressado que as bençãos terminassem, para poder partir à procura de seus obscenos encontros.
Afinal aquele homem que falava era um benzedor que fora recrutado à pressa, para me ofertar a extrema-unção, antes que apressada partisse e todos se sentissem… na falha… de mais um momento de união.
Desmantelada família, venenosos corações, perdidos sentimentos.
Nenhum dos presentes era gente! Nem mesmo as mulheres que conduziam todos os dias a vida, de tão fraca produção.
Minha Mãe fora simples e honesta barriga de aluguer, de um homem que nunca a amara e que de mimos… lhe prestava nas noites de bebida fresca, alguns açoites de maquilhagem sensual. Desses doces momentos, foram nascendo filhos. Todos fracos de carácter e parecidos com o pai. Só Margarida se aproveitara, contudo a doença levara-a cedo como só a morte gulosa sabe fazer. Assim, a família pudera manter o seu estilo vil e visceroso.
-Perguntas-me... -E tu?
-Eras como eles?
Igual de igual. Sangue do mesmo sangue. Desleal, ingrata, insensível e infeliz… tendo encontrado Naquele Quarto, a única Beleza que a vida me pudera ofertar.
O quarto era pequeno, abafado, sem janelas... mas era Meu. Apenas Meu! E esse direito, essa posse deu-me forças para poder ver o que daquele espaço era impossível alcançar.
Nunca li. Para além de não haver livros na casa, ninguém me tinha ensinado as letras. Daí que também nunca tivesse escrito. Nunca bordei... só nos sonhos que durante a noite se apoderavam de mim, como tentáculos que não largam presa. Nunca conversei, porque ninguém ia ao quarto, sem ser para uma muda de fralda ou uma leva de pão e água que saciavam fome e sede.
Apesar de tudo… era um quarto, o meu quarto. Só meu!
Nele viajei anos… sem sair da enxerga. Vi o mundo. Conheci gente. Desenhei rostos e corpos. Vivi amores e fiz filhos. Vi dias de sol e noites de bruma, sem perceber se de dia ou de noite se vestiam.
Desenhei uma janela no tecto. Através dela todos os dias contava as estrelas e me regalava com os desenhos da lua, nos seus quartos ou cheias. A janela não tinha vidros e por essa razão as invernias tolhiam-me os gestos e os movimentos. Sempre pensei que por isso não conseguia andar. Também as tempestades me assustavam e os dias quentes me curtiam a pele...
Ao lado da minha janela havia um sol. Ora se escondia, ora se enfeitava. E eu era feliz!
Em tempos fora nova. Em tempos sentira o ódio que consola e aquece. Era essa escassez de amor, que me fazia levantar todos os dias sem chorar a miséria e a servidão que se vivia. Minha Mãe marcada pelo tempo e pelo desalento, não aprendera a beijar os filhos. Para ela todos nós eramos frutos bichados de dolorosas relações de amor. Sem amor nos tivera ...e... sem amor nos criara. Plenos de gorgulho, nunca percebemos o que era amar, desejar ou partilhar.
Só aprendi a amar quando me trancaram naquele quarto. Penúltima morada. Penumbra de uma vida.
Na verdade… cansara-me de ser tão feliz… naquele espaço!

létinha Julho de 2006