2008/03/27

A CHICA DE SERRALVES

Chica, a filha do compadre Bezerra, era a moça mais bonita e prazenteira de todo o povoado. Não havia corpo mais bem feito nem olhar mais vivo em todo o vale.
Na aldeia de Serralves, havia quem usasse como trunfo a sua deslumbrante beleza para vencer algumas querelas.
Quantas vezes ouvi no largo o compadre Toina gritar ao seu vizinho de Lenhas - "... mas, não há rapariga mais formosa que a nossa Chica. Podem procurar nos arredores que mais graciosa que a Chica não há !!!" E o compadre Zé, de capa ao ombro, partia carregando os seus tamancos de madeira, vencido em mais uma luta.
Todos naquela aldeia se defendiam, terminados os argumentos,com a cor nívea de Chica, o verde transparente dos seus olhos, a sua face gaiata e o seu belo sorriso malandro.
Chica era na verdade uma bonita rapariga.
Nesse Verão, havia ela completado catorze viçosas e frescas primaveras. E em casa de seus pais, uma humilde casa de lavradores, havia-se festejado o seu aniversário como se fora Natal. Matou-se o cabrito mais gordo, fizeram-se filhós, cozera-se a broa mais saborosa e até se compraram rebuçados na venda do Passadas. Mas... não era só na casa do compadre Bezerra que se vivia esta felicidade. Todas as casas da aldeia, melhor ou pior, festejavam os anos da Chiquinha.
Nesse dia, pela manhã, compadre Bezerra vestia o seu fato domingueiro e Maria punha sempre ao peito um medalhão de ouro, única relíquia que a família possuía e, felizes, saíam ao largo a cumprimentar os seus amigos.
Era bonito de ver. Não havia pais mais orgulhosos do que aqueles pobres de Serralves. Só Chica brincava com toda aquela encenação. Vestida também a rigor campesino, respondia a quem passava - "São doudos, ti Marieta, são doudos, mas há-de passar-lhes" - "Irra, tio Zé, que não os vejo tomarem juízo"...
A verdade é que esta "doença levada", como a apelidava Chica, não passava e assim seguiram os tempos até Chica completar os dezassete anos.


Nesse ano tinham vindo habitar o paço de Serralves os senhores de Souselas. O velho casarão, antigamente ocupado pelo tio austero da fidalga, dera agora lugar a uma casa alegre onde os senhores viviam.
Luísa, sempre vestida de negro pelas gerações passadas, tinha o hábito de diariamente passear pelos caminhos da aldeia. Todos gostavam dela e a respeitavam. Luxuosamente vestida e com semblante sério e um pouco misterioso para aquela gente da aldeia, representava uma família antiga que tinha alimentado muitas gerações de lavradores. Ela era, por essa razão, o orgulho do vale. Todos lhe tiravam o chapéu à passagem e, humildes, se curvavam como só faziam ao velho pároco.
Luísa gostava de conversar com eles, porém, ignorantes e submissos, nenhum habitante lhe respondia às questões se não com um grunhido rouco de "Bons-dias Srª. D. Luísa", "Sim, minha senhora", "Não, a colheita vai fraca, ai se vai!"...
Luísa desesperava com estas evasivas tímidas e humildes, estava habituada à cidade onde todos conversavam sem rodeios. Nunca Luísa percebera que a diferença de classes era tão poderosa na serra que deixava mudos até os mais conversadores.
Disso se queixava constantemente ao senhor de Souselas, fidalgo antigo e conservador, que a estas queixas contínuas lhe respondia sempre com um ar sério e grave "Que era bem feito, quando aprenderia ela que não se deve misturar o trigo com o joio." Apesar de tudo, em Lisboa não era feliz. Faltavam-lhe os filhos que Deus não lhe dera e a sociedade conversadora não a conquistara nunca. A vida em sociedade cansava-a, assim, só. Como uma verdadeira Sousela, herdara o gosto pelo campo, pelo céu azul, pelos ribeiros cantadores e pelas gentes do povo. E agora que se encontrava entre eles, sentia-se magoada, pois ninguém compreendia este seu amor à serra e às suas gentes.



Um dia, num dos seus passeios matinais, Luísa ouviu, ao passar junto ao ribeiro, uma voz timbrada e ritmada que entoava uma dessas canções que tão bem caracterizam o folclore nacional. Quis saber a quem pertencia aquela voz tão cristalina e, roçando o seu vestido de linho por entre o juncal verdejante, viu debruçada sobre a pedra lavadeira uma rapariga ainda jovem. O seu cabelo cor da espiga de milho dourado, os ombros bem constituídos dentro da camisa alva de estopa faziam realçar um corpo perfeito. Luísa questionava-se como seria o seu rosto, quando dois olhos rasgados e verdes se viraram para ela. Que tez! Que olhos magníficos! Que sorriso brilhante! Tudo se encontrava em harmonia naquele rosto.
Chica não se assustou com a sua presença. Parecia até que já a conhecia, tal era o ar natural e gracioso com que a observava. Na realidade, Chica já ouvira falar daquela senhora bonita que viera habitar o paço e que desejava há muito conhecer.
Pela primeira vez, Luísa, sentada sobre a velha mó, à sombra da árvore frondosa que conhecera em menina, conversou alegremente.

Chica, enérgica e viva, não se incomodou com a presença da fidalga, assim era conhecida na aldeia Luísa de Souselas.
A todas as questões colocadas por Luísa, a rapariga, desenvolta, respondia "Sou a Chica, filha do compadre Bezerra e da Maria lavadeira..."; ..."tenho dezassete anos feitos no dia da Senhora da Agonia, padroeira dos pescadores..."; ..."não tenho irmãos não senhor..."; “sou singela, atão não haveria de ser? ... meus queridos pais são gente boa, mas sonham para mim um casamento rico talvez... são doudos, mas boa gente".
Depois de ter respondido às perguntas da fidalga, não se calou e foi com ligeireza na voz que retorquiu a Luísa..."E a fidalga, quis vir de lá?"..."Ah! não era eu que trocava os brocados e as rendas por esta miséria na aldeia"... "E como se vive nessa Lisboa? Todos são ricos, está-se a ver! Todos se perfumam de manhã e, à noite, é só bailar! Ah! Quem me dera pisar uma vez que fosse esses grandes salões que existem na cidade".
Luísa, ao perceber que Chica se sentia atraída pelo fascínio e mistério da grande cidade, convidou-a a ir visitar Lisboa, pelo Verão que se aproximava, quando o Senhor de Souselas tivesse que ir consultar os seus solicitadores.
Chica não se fez rogada, logo aceitou o convite e alegre partiu, levando à cabeça o seu caixote de madeira no qual se empilhavam roupa lavada e muitos sonhos...

No dia seguinte, não se falava na aldeia doutro assunto... "Chica ia à cidade grande a mais a Srª. D.Luísa ...", "... será que por lá ficaria? ... tão bonita, quem não gostaria de a ver voltear nos belos salões?”.
A quem não agradou a ideia fora ao compadre Bezerra que, ferido no seu amor de pai, via a filha a não voltar a Serralves, a esquecer a sua condição, quem sabe se a ser humilhada por essa gente fina que sabia tão bem desprezar os mais humildes.
Bezerra chegou mesmo a chorar naquele domingo no adro da igreja. O compadre Zé, sempre inimigo nas querelas, batia-lhe agora no ombro, tristemente dizendo "Deixa lá velho, quem sabe a rapariga não foi feita para um sítio desses".
Bezerra não se conformava. Levar-lhe-iam a menina dos seus olhos, aquela que ele criara com tanto amor e dedicação para viver junto a ele e lhe dar muitos netos.
Chica, cada vez mais formosa, repetia-lhes constantemente - "Não sejam tontos, vá lá. Algum dia eu os esqueceria? Algum dia não lembraria quem me botou no mundo? Quem me criou assim tão garrana e fresca?"
A estas palavras o pobre casal acalmava os seus prantos, mas lá no íntimo temiam a separação e, quem sabe, o esquecimento.

Passaram alguns meses e chegou esse Junho quente que tão bem caracterizava a serra.
Chica já nem lembrava a festa que os pais tinham sonhado para esse Agosto que se aproximava. Esse quinze de Agosto mítico e adorado que se festejava em euforia na aldeia. Compadre Bezerra tinha mesmo afirmado na Páscoa que haveria fogo de artifício, que o senhor pároco mandaria vir de Festins. Eram dezoito anos, uma rica idade que não mais se repetiria.
Chica, envolta em sonhos, esquecia o seu aniversário, as colheitas, os animais a cuidar...
Os pais, angustiados e deprimidos, seguiam a sua alegria, pressagiando um futuro triste.



Chegou o dia da partida.
Na aldeia, juntavam-se aos magotes para ver Chica entrar no carro que a levaria à cidade.
Chica já não vestia estopa. Luísa tinha-lhe dado um vestido de cassa vermelha que a deixava ainda mais bela.
O seu cabelo dourado não esvoaçava ao vento. Penteado em tranças grossas, unia-se na nuca apertado por um laço de cetim.
Ninguém acreditava que aquela rapariga que subia para o carro, mostrando a botina lustrosa, era a Chica gaiata.
Parecia uma rainha.
Tinha porte de imperatriz.
Era mais uma soberana, no país dos soberanos.

Maria e Bezerra choravam. Chica acenava-lhes com o lenço alvo e rendado que Maria guardava fielmente do seu dia de casamento.
Na curva da estrada, Chica acenou com mais vontade e energia como se fosse o último adeus a Serralves, à igreja, ao largo, às gentes... a seus pais.

Nunca mais se festejou em Serralves o dia quinze de Agosto. Nunca mais se ouviu cantar a moça trigueira junto ao rio. Nunca mais o Paço de Serralves se abriu. Nunca mais a aldeia ganhou querelas com a ajuda da formosura de Chica.
Sabia-se apenas que Chica tudo esqueceu.
O berço que a viu nascer. O Agosto que sempre a presenteou. A igreja que a viu baptizar. Os pais que tanto a amavam...

Apesar da ingratidão, ainda hoje continuam a ouvir-se histórias de Chica, a moça mais bonita de toda a aldeia e de todo o vale de Serralves.