2005/12/13

O NATAL DE ONTEM

Na aldeia tudo está calmo.
Os prados verdes de Maio e dourados de Junho deram lugar a um manto branco de paz e inocência que tudo cobre.
Aqui e ali, saltitam coelhos atrás de um rato pequeno que se esgueira por entre as pedras do velho moinho da tia Celeste.
Eu, sozinho atrás da janela, olho aquela natureza bonita que encantava os meus sonhos de menino.
Lembro, com saudade, que cedo acordava e enfiado nas botas de borracha, corria feliz a pisar aquela neve fria que me encantava. Como era feiticeira toda aquela brancura! Cegava-me de início e depois... cobria-me... até me sentir gelado.
Era aos gritos da avó Lena que corria para casa onde me esperava o velho sermão de sempre e a roupa quente junto à lareira. A avó, sempre tão afável e preocupada lembrava-me a pneumonia que tinha tido aos quatro anos e ligeira enfiava-me a camisola, as calças, o casaco de lã e as meias grossas.
Eu, garoto ainda, não entendia todo aquele frenesi. Ouvia-a por respeito, mas nunca percebia todas aquelas preocupações.
Tantos cuidados... quando eu só queria pisar aquela neve branca que me atraía e tanta satisfação me dava.

Aos domingos saía com ela cedo. Era o dia das visitas. A casa do Senhor, em primeiro lugar; a casa da tia Custódia, velha caseira que encamara havia alguns anos e o tio Manuel que vivia no outeiro.
Todos eram simpáticos para comigo. Contavam-me velhas histórias, sempre as mesmas, que lembravam episódios antigos em que meu pai participara. Era com os olhos marejados de água que, por fim, diziam que o Lucianinho cada vez mais se parecia com o pai.
Pobre Custódia, pobre tio Manuel, como lhes era agradável sonhar com o passado...
Nessa época as histórias antigas pouco me diziam. Quem as ouvia, sempre atenta e também a choramingar, era a avó Lena. Também ela sonhava com o seu filho, menino travesso, que corria pelos campos e a arreliava ainda mais do que eu.
Depois, era o regresso a casa. O almoço quente ao lume, as resmunguices do avô, as traquinices de Teresinha, minha irmã mais nova. Tudo fazia parte do meu domingo na aldeia.
À tarde, esperava ansioso pela chegada do Zé da Maria Francisca, do João e da alegre Ana. Estes "amigos de Stª. Cristina", como lhes chamava na cidade, eram os meus companheiros de guerra travadas no campo, de passeios pelo deserto, de investidas no mato. Eram eles os meus companheiros da aldeia e os meus companheiros de sonhos, quando na cidade, bem longe, recordava as nossas brincadeiras.

O Zé da Maria Francisca era um garoto magro e com aspecto doentio que nem parecia ter já nove anos. Era filho segundo de uma numerosa família serrana. O João e Ana eram dois gémeos que, como eu, costumavam passar as férias de Natal na aldeia. Filhos de um juíz a exercer na Beira, eram dois garotos travessos que passavam o ano esperando gulosos como eu, a chegada do frio de Dezembro, do Natal e da neve.
Juntos formávamos um quarteto poderoso, forte e disciplinado que todas as noites agradecia a Deus, termos avós lá bem longe, na serra.

A noite de domingo era calmamente passada à lareira, ouvindo o primo Berto contar os seus negócios de gado, o tio Zé tocar guitarra e a avó cantar, enquanto fazia a sua renda de bilros. Como das suas mãos cansadas saíam trabalhos bonitos!
Lembro-me de passar muito tempo olhando-a, sempre com um sorriso nos lábios entoando a sua canção "Quien no habla como tu, no sabe ser un bon nobio"... Como cantava bem! Como o seu sorriso me parecia tão quente, como o fogo que ardia na lareira.
A avó Lena possuía a lareira mais quente de toda a aldeia.
Não faltava calor naquela casa. Muito vinha do fogo, muito nos chegava daquela mulher tão maravilhosa.

Todos os anos se passava o Natal em casa da avó. Desde que meu pai falecera, Maria, minha mãe, levava-nos à serra.
Já muitos Natais se tinham festejado assim... brancos, quentes, sossegados. Eram os dias mais felizes da minha curta vivência. Passava todos os restantes, na cidade, planeando as novas brincadeiras, imaginando novos refúgios, sonhando com aquela casa de pedra tão fresca e acolhedora.

Os anos passaram. Assisti com a avó Lena à morte do avô, às agonias do tio Manuel, às missas de domingo, às visitas à velha Custódia.
Com ela chorei a perda da Musqueta, a sua vaca preferida e a morte do Farrusco, o cão que lhe fazia companhia e pertencera a meu pai. Continuei a ouvi-la cantar, a observar-lhe aquele sorriso meigo e tranquilo e a brincar com os meus heróis preferidos.
Como foi bela a minha infância!
Bela e triste, triste e bela. Chorando a morte de um familiar ou amigo, cantado aos serões de domingo, rindo às brincadeiras em grupo e alegrando-me ao nascimento de um novo cabrito.
O mais triste eram as partidas... Uma semana antes, já angustiados, não brincávamos. Cessavam pela casa e pelo vale os nossos gritos e as nossas travessuras. A avó lembrava-me sempre que era necessário aproveitar a vida até ao último minuto, mas quem conseguia brincar ou sorrir ao lembrar que mais um ano chegava e que afastados, não nos veríamos, não nos sentaríamos à lareira, não ouviríamos a avó Lena a cantar, nem a velha Custódia narrar histórias antigas do seu querido Pedrinho.
Um ano houve em que não passei o Natal na aldeia. Foi um Natal triste, tudo me faltou. Sentia saudades da avó, dos meus companheiros, daquela neve fria.
Teresinha adoeceu e minha mãe velara-a intensamente sem a deixar apanhar frio, como prevenira o doutor.
À janela, como hoje, sentia falta daquele agasalho serrano, não cheirava o doce aroma do meu campo, não via pisando a neve, o fumo quente que saía da chaminé da casa da avó.
Quando Teresinha se restabeleceu, já o Natal ia longe. A Primavera começava a brotar e eu, na cidade, lembrava como seriam belos os campos verdes e as andorinhas esvoaçando o céu azul. A avó Lena contava-me sempre histórias sobre os campos em flor, os animais que nasciam ao romper da erva verde e o cantar dos ribeiros que corriam por entre o prado.
E eu... na cidade olhando o céu recortado pelos telhados altos e toscos, lembrava com saudade o paraíso de Stª. Cristina.

Qual não foi minha alegria, ao ver chegar de novo o frio, a diferença dos dias, a chuva grossa que chamava o Inverno. Cada suspiro de Maria era para mim um verdadeiro conforto.
Minha mãe, tão avessa ao Inverno, detestava ouvir o vento assobiar por entre as árvores, e eu no meu canto, guloso, sorria a cada suspiro longo, como um predador à espera da caça.

Chegou Dezembro. Com azáfama, depressa tudo se arranjou e partímos para a serra.
Como sempre, Maria fazia a viagem connosco e depois de descansar três ou quatro dias, voltava ao litoral, para só regressar em meados de Janeiro.
Teresinha estava fazendo-se uma mulher. Estava mais forte e robusta cada ano que passava . Quando a olhava, já quase nem a reconhecia. Perdera as traquinices de menina e já usava vaidosa, uma fita de cetim, nos cabelos. Como era bonita a minha irmã! Parecida com Maria, apesar de na aldeia se dizer que tinha as feições de Pedro.
A avó Lena deleitava-se ao olhá-la. Não havia para ela mulher mais bela e elegante. Netos varões tinha dois, eu e o meu primo Zé. Do Zé pouco se sabia. Emigrantes há muitos anos, meus tios depressa esqueceram a serra e a avó Lena.
Nós eramos os seus verdadeiros “herdeiros”. Sentado ao seu lado, com Teresa no colo, quantas vezes a ouvi enumerar todas as riquezas que deixaria a cada um de nós.
- "Para Teresinha, o meu coelhinho branco - para Lucianinho, a Francesca que dá muito leite" - "Para Teresinha, a melhor poedeira - para Lucianinho o meu gato angorâ" - "Para Teresinha os bilros da avó - para Lucianinho, a minha velha cadeira de baloiço", e com esta cantilena a avó Lena nos entretia feliz por ter a quem deixar o seu mais precioso tesouro.
Não deixaria ouro, nem luxo, mas para nós aquelas relíquias tinham um valor incalculável.
Um ano, no Outono, a avó Lena faleceu. Pela primeira vez visitei a serra sem ser no Natal.
Pareceu-me diferente. Nada me mostrou de belo. As bonitas cores outonais nada me disseram e só, sentia um vazio enorme que se ia apoderando de mim, olhando o fogo vivo, junto ao qual a avó Lena durante tantos anos se aqueceu.
Os sinos, longe, entoavam uma melodia triste e compassada. A igreja pareceu-me pela primeira vez fria e desagradável. As chuvas que prediziam o Natal próximo, angustiavam-me de tal forma, que me faziam revoltar contra uma época tão bela e de que eu sempre tanto gostei.
Esse Natal foi o mais triste. Chorei a avó, o avô, o tio Manuel, a velha Custódia, a Musqueta, o Farrusco e até a neve branca que caía em grandes flocos.
À hora da ceia olhei a cadeira de baloiço vazia e a cestinha de palha onde sempre estavam os seus trabalhos e pensei nos Natais passados, felizes e quentes.
Junto àquela mulher que tanto amei nunca havia tristezas, longe dela a tristeza imperava crua e desmedida.

Pela primeira vez, nesse Natal me sentei no legado da avó e olhando o fogo, ouvia lá bem longe a canção dos nobios que ela tão bem entoava. Como que adivinhando meus pensamentos, Teresinha sentou-se a meu lado, com o gordo gato angorã da avó Lena nos braços e baixinho cantou a canção espanhola. Ao ouvi-la senti a presença daquela mulher que egoístamente nos tinha tão depressa abandonado e, fechando os olhos, adormeci sonhando...

Nesse ano pelo Verão, Teresa apaixonou-se por um rapaz do Minho, filho de um mercador conhecido e pouco tempo depois casou.
A Ana tinha também encontrado a felicidade junto do Zé da Maria Francisca, agora um homem forte e dinâmico, um dos grandes comerciantes da região serrana.
O João, esse... emigrou. Ligado sempre a um espírito aventureiro, resolveu fazer-se ao mar e viver a vida num país longínquo.
Fiquei eu, sozinho, sem companheiros de lutas e tréguas, sem companheiros de outras guerras.
Nunca mais deixei de passar o Natal em Stª. Cristina. Todos os anos me aqueço à lareira da avó e me embalo na sua velha cadeira de baloiço. Assisto ao nascimento das rêses de Dezembro e faço o presépio junto ao canto da sala, como a avó fazia em tempos.

Nesta janela, onde agora olho a neve lembro com saudade as botas grossas de borracha, os sermões da avó Lena e as roupas quentes que me vestia.
Um sonho me faz ansiar o próximo Natal em Stª. Cristina - ter à mesa da ceia todos os meus amigos e, sentada na cadeira da avó a velha mãe Maria.
Com eles festejarei o Natal da saudade, o Natal de vida, o Natal da casa da serra.


létinha (ficção)

2005/12/01

Sonho Sonhado...

Por cada
Sonho
Sonhado
Nasce
Uma nova estrela
No céu…

Por cada
Vida
Vivida
Novos padrões
Novos rumos…

Por cada
Estrada
Percorrida
Um amigo
Meu e teu…

Por cada
Viagem
Traçada
Nova rota
Imaginada…

Por cada
Brilhante
Luar
Um pensamento
Se fantasia…

Por cada
Noite
Que desce
Se faz
Um novo dia
Sem véu…

létinha 2005